sábado, 23 de fevereiro de 2008

Foi há 2 anos...




Os becos da vergonha, escuros como outrora, vão sendo povoados. O chão continuará gelado, húmido, arrepiantemente cru aos nossos ossos. Deito-me, sinto a sua invasão e aceito. Aceito, quero, exijo aqui ficar para sempre até me corroeres todo, por todo, de todo o modo, todos os segundos! Mas permaneço eu... sempre eu, sempre o mesmo aos olhos que passam e não me vêem, que nunca me vêem a ter vontade de apodrecer de asco, a derreter de vergonha! - Vejam, olhem! E vêem, e olham, e permaneço igual. A ordem no nascer, a asfixia dos dias normais, a indecência de ser maioria! Sou-o, mas não tenho culpa! Quero culpados, vejam: é tudo fachada, como tudo, como os vossos gestos, os vossos rostos, as vossas vidas! Ide, venham, corram, cobardes! Na cobardia da vossa indiferença, no vilipêndio de cada olhar em frente: eu EXISTO! Que linda a vossa ordem: vai por onde ele vai, o rio corre sempre para o mesmo destino - sei que hoje vai chover em cada centímetro de chão e que vai limpar da cidade cada fluido do pecado, cada gota de sangue roubada, cada nojeira se ser. Mas tens uma capa e a noite não cai sobre ti. Mas a noite, varrida pela borrasca justa é toda minha, é toda nossa, que do chão cinzento fazemos leito.
2 anos e o rio douro é o mesmo. As ruas são as mesmas e com mais gente, as noites são igualmente gélidas de gente e o meu corpo continua no chão: inerte, cinzento, feito folhas que caem, entregue, à espera de me fundir contigo, Gisberta...

4 comentários:

Helena Velho disse...

Pedro:

ao ler-te lembrei-me do que Eugénio de Andrade( que sofreu "na pele" o estigma e a desciriminação , anos e anos):

"Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos."

... e uma névoa entolda a minha visão, neste momento, porque a Gisberta viveu em busca de si própria, de momentos de paz e felicidade e até isso lhe foi roubado na hora do seu assassínio!

Olavo Maluf disse...

Maria,

Muito obrigado pelo comentário. O meu post tem como objectivo primeiro lembrar Gisberta e fazer uma humilde homenagem à sua pessoa e a todas as Gisbertas. Saber que também consegui que te lembrasses do grande Eugénio de Andrade é algo que me deixa mesmo muito feliz. Lembrar Gisberta é um imperativo, lembrar Eugénio é uma necessidade.
Obrigado pela partilha.

Um abraço.

Anónimo disse...

O teu texto está muito bonito, como já te tinha dito. Não belo por ter beleza aparente, mas por ter profundidade e por tocar inevitavelmente. Nunca tinha lido um texto teu assim. Acho que sabes que aprecio ler algo com esta dimensão.
Mas o interior do texto é o mais importante, aqui deixas uma significativa homenagem. Não me restam dúvidas de que Gisberta (se é que é possível) se sente homenageada e lembrada de forma digna e honrosa também.
Parabéns pelas excelentes ideias que aqui deixas ex/implícitas e ainda pelo sentimento e força que imprimes.
Sónia

Olavo Maluf disse...

Sónia,

Foi com muito prazer que li o teu comentário, obrigado.
Esta é uma questão que, como sabes, me diz muito. E para mim, Gisberta é um símbolo para todos os apoiantes da causa de libertação LGBT. Este é um post profundamente íntimo, escrito com muita alma . Fico portanto feliz que alguém o tenha lido e, sobretudo, que tenha sido tocante de alguma forma.
Muito obrigado por passares por cá. És uma ilustre da minha vida e, por isso, uma ilustre deste blog; obrigado pelo apoio.

Um abraço,

Pedro.